Bim Bom




Como tudo que é incorporado na memória coletiva, a Bossa Nova tem seus lugares-comuns. Um deles é a de que a nova música foi uma ruptura com a tradição de excessos do samba-canção e do jeito de interpretar dos músicos da Rádio Nacional, como Orlando Silva e Dalva de Oliveira.


Fuçando na internet, achei um artigo muito bacana de uma pesquisadora mineira radicada no RJ, Santuza Cambraia Neves. DA BOSSA NOVA À TROPICÁLIA: contenção e excesso na música popular*, disponível na página do Scielo, um site com vários textos acadêmicos grátis.


Chamou-me atenção a ênfase da autora para a bossa-nova além João Gilberto. Primeiro ela assume sua genialidade, atribuindo a ele o status de engenheiro, conceito desenvolvido por Jacques Derrida e que designa aquele que constrói seu discurso a partir de si mesmo. Se João Gilberto construiu uma nova forma de tocar e cantar, existiram outros representantes da Bossa Nova com trajetórias diversas. Ela cita Roberto Menescal e Carlos Lyra, e a declarada influência de Ravel, Debussy, e dos boleros de Lucho Gatica. Isso me fez lembrar de quando entrevistei Carlos Lyra, a propósito dos 50 anos da Bossa Nova, em 2007, para o Jornal da Tarde. Fiquei curiosa para rever a entrevista, que posto aqui. Nela, Lyra diz que a Bossa não foi ruptura com o samba-canção, citando como exemplo o primeiro disco de Silvinha Telles que trazia de um lado um samba-canção de Lyra, e de outro um de Tom Jobim. "Nem existia João Gilberto", diz ele.

   
"O povo não entende a Bossa"

Músico diz por que não vê Tom Jobim como ícone e desabafa sobre a falta de cultura no País

Georgia Nicolau


 
Para alguns, foi um movimento datado que durou apenas enquanto uma certa classe média carioca ainda acreditava no Brasil e no projeto desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek. Mas, quase 50 anos depois do lançamento do compacto de um 'tal violonista' baiano chamado João Gilberto, com as canções Chega de Saudade, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, e Bim Bom, do próprio, a bossa nova continua viva nas telenovelas brasileiras, em elevadores e na voz de artistas como Luciana Souza, Bebel Gilberto e Cibelle.

Para começar os festejos de meio século do movimento, a partir dessa quinta-feira até o final do ano, o Tom Jazz recebe o evento Agenda Bossa Nova. Serão ao todo 26 apresentações que reunirão ícones da Bossa como Carlos Lyra, Leny Andrade, Alaíde Costa, Os Cariocas, Marcos Valle, Roberto Menescal, João Donato e novos talentos.

A primeira temporada (nos dias 13, 14 e 15) será com o cantor e compositor Carlos Lyra. Parceiro de Vinicius de Moraes em clássicos como Minha Namorada e Coisa Mais Linda, Lyra foi um dos fundadores do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes, o famoso CPC da UNE, que reuniu um setor da música brasileira com um projeto de atuar politicamente por meio da arte.

Morando em Ipanema desde da volta do auto-exílio durante a ditadura, Lyra falou ao JT, por telefone, sobre os 50 anos da Bossa Nova, política e cultura.

No livro 'Chega de Saudade', de Ruy Castro, o autor diz que seus ídolos quando adolescente eram Johnny Alf e o violonista Garoto. Quem são seus ídolos hoje?

Ravel, Debussy, Chopin, Villa-Lobos e Lucho Gatica, que cantava bolero. O bolero é muito importante porque o samba-canção é o bolero brasileiro e a bossa nova começou com o samba-canção. Não começou com batidinha de violão, não. Isso veio depois. No primeiro disco da (cantora) Silvinha Telles, ela cantava um samba-canção meu de um lado e do Tom Jobim do outro. Nem existia João Gilberto. Antes de mais nada, bossa nova é composição. Agora, a interpretação de João Gilberto é muito importante. Ele deu um caminho, uma maneira de interpretar. Já existia a melodia, o ritmo e a composição. Faltava interpretação.

Existe algum 'pai' do movimento Bossa Nova?

Existe uma mãe. Eu sou meio matriarcal, meus grandes heróis são quase todos mulheres. A mãe da Bossa é a classe média. Ela nasceu da classe média. Se não fosse por isso, não duraria 50 anos. Seria uma música de geração e teria acabado lá.

De onde vem a identificação?

A bossa é culta, tem cultura universal. Tem influência de Ravel, Debussy, do jazz americano, da canção francesa. E todas essas coisas estabelecem uma identificação com a classe média do mundo inteiro. No exterior, eles pagam caro, bem. Eu só moro aqui porque é bonito (risos).

O que você acha de o Tom Jobim ter se tornado um ícone no Brasil e no mundo?

Acho que o Tom foi um dos maiores compositores que já tivemos. Mas, para mim, ele não é um ícone, não, porque era meu companheiro, meu colega. Não o vejo como uma coisa muito distante. Ele era meu fã, escreveu no meu songbook coisas lindas sobre mim. Adoro o que ele faz porque eu entendo.

Mas a mídia acabou elegendo algumas pessoas...

A mídia está aí para isso, transformar pessoas em ícones. Mas o Tom, para mim, é um colega.

Existe algum ressentimento seu pelo fato de a bossa ter virado 'sinônimo' de Tom Jobim, Vinicius e João?

Não. Existe uma certa decepção pelas pessoas não entenderem a bossa nova. Elas falam que é Tom, Vinícius e João e não é - tem mais coisa. É toda uma geração de músicos, compositores e artistas sem a qual a bossa não teria existido. Dizem que a bossa nova nasceu na casa da Nara Leão. Besteira. Dizem também que é um estado de espírito. Outra besteira. Um monte de bobagem... Dizem que é samba, mas tem muito mais coisa. Bossa nova tem valsa, baião, modinha, samba-canção, marcha-rancho, tantos ritmos, não é só samba, não.

Como o senhor definiria a Bossa Nova? É um movimento classe média, afinal?

Bossa nova é música feita pela classe média para a classe média. Infelizmente, é por isso que ela não tem tanta força com o povão. O povão não entende porque a bossa nova tem cultura e o povão não tem cultura. O Bolsa-Família nunca vai entender a bossa direito. É o que falta no Brasil: cultura. Diziam que bossa nova era elite. Se você está dizendo que cultura é elite está dizendo outra besteira. Cultura é uma coisa que eu queria que todo brasileiro tivesse. Ao invés de Bolsa Família, que tivéssemos gente culta nas escolas, que não houvesse analfabetos nem famintos. A bossa é culta, mas não quer dizer que seja de elite.

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